O homem que descobriu Marte


Você sabe que está ficando velho quando os perfis que escreveu vão aos poucos se transformando em obituários. Para lembrar do grande Ray Bradbury, que foi pro espaço sideral hoje, aos 91 anos, segue uma entrevista que fiz com ele há seis giros em volta do Sol , para a Trip: falamos sobre futuro, tecnologia e seu ódio por Michael Moore

É mais ou menos como se Rubem Braga tivesse descido no planeta vermelho. Não espere encontrar em As Crônicas Marcianas, clássico de 1950, apenas menções a invenções incríveis, alienígenas e viagens espaciais à Star Trek. Isso é coisa pra crianças ou nerds. O californiano Ray Bradbury, 85, é um dos precursores do que hoje se convenciona chamar de ficção especulativa – uma ficção-científica que, em vez de se apoiar em profecias tecnológicas, se ocupa em propor hipóteses de comportamentos psicológicos e situações sociais. Nessa laia inscreve-se Philip K. Dick, além de William Gibson e Margaret Atwood. Há mesmo quem encontre na filosofia de Matrix ecos do romantismo de Bradbury, hoje um dos três grandes autores de ficção científica vivos, ao lado do inglês Arthur C. Clarke [2001, Uma Odisséia no Espaço] e do polonês Stanislaw Lem [Solaris]. Bradbury ficou conhecido por relacionar terror, humor e suspense à ficção científica. Autor de quase uma centena de livros, escreveu ainda poesia, ensaios de filosofia e teoria literária – talvez por isso, aliás, ele deteste ser rotulado como um escritor de ficção científica.

Em As Crônicas Marcianas, que volta às prateleiras, estão histórias como a dos tripulantes que descem em Marte e, afirmando-se astronautas, são levados a um hospício marciano. Ou a narrativa de horror de homens que pensam, ao recém-pousar em Marte, ter feito uma viagem no tempo. Ou a de um panaca que quer montar uma barraca de cachorro-quente no planeta vermelho. Como em seu também clássico Fahrenheit 451, de 1953 [transformado em filme por François Truffaut em 1966], Bradbury prova que a boa ficção científica não se concentra em gadgets, robôs ou aliens – mas em algo bastante velho: a humanidade. Direto de sua mansão em Los Angeles, pedimos que Bradbury nos falasse do presente e do futuro. Se é que temos algum.

Em um ambiente que parece ser um escritório, um homem que parece ser Ray Bradbury

As recentes descobertas em Marte não o desencantam um pouco em relação ao que escreveu em As Crônicas Marcianas? Na época tínhamos só as fotos tiradas do observatório do Arizona, quse não havia informação sobre Marte. Já hoje temos dados fascinantes, mas sem nenhuma relação com meu livro. Daqui a cem anos, quando existir civilização em Marte, leremos o livro do mesmo modo.

O clássico completa este ano 55 anos. Como você era na época em que escreveu o livro?
Tinha 27 anos. Era pobre, não tinha carro nem telefone. Morava em Venice, Califórnia – não por questão de estilo, mas porque alugar um bangalô na praia era barato. Ganhava 14 dólares por semana! Usava uma máquina de escrever alugada em uma biblioteca. Foi lá que criei Fahrenheit 451 – aquele monte de livros me contaminou a imaginação.

Hoje você já trocou as máquinas de escrever por um laptop? Computadores são máquinas de escrever metidas a besta. Tenho cinco máquinas de escrever, me dou muito bem com elas há anos. Para que usar um computador?

E tem usado muito as máquinas de escrever? Sim, estou finalizando três novos romances. Tenho um livro de ensaios sobre filosofia que deve sair em breve. Concluo também mais um volume de poesia e preparo uma antologia de histórias curtas, com 101 contos. Escrevo ainda um roteiro para TV e planejo estrear nos próximos meses uma peça na Broadway. Também escrevo um roteiro para uma nova versão cinematográfica de Fahrenheit 451.

Algum desses romances é de ficção científica? Nenhum. Não sou um escritor de ficção científica. O único livro de ficção científica que escrevi foi Fahrenheit 451. As Crônicas Marcianas é um livro de fantasia.

H.G. Wells ou Júlio Verne? Cada vez mais Júlio Verne.

E ficção científica contemporânea, William Gibson, Bruce Sterling… você os lê? Como eu disse, não me interesso mais por ficção científica. Só na época de Fahrenheit 451.

Neste livro, você cria uma distopia em que os livros são proibidos. Não acha que hoje, com o excesso de informação que nos cerca, estamos perdendo contato com os livros que importam – do mesmo modo como, em Fahrenheit 451, os livros eram queimados? Sim! Temos informação demais! Hoje pensamos que somos mais espertos, mas não somos. TV e internet nos dão muita informação, mas não há cérebro ali, só falta de sentido. Você tem que saber escolher o que interessa e deixar de lado livros, artigos e filmes de que não precisa. Somos contaminados por factóides. Você não precisa dos resultados do futebol ou da vida dos atores e das celebridades… nada disso interessa. Você tem de se tornar um rigoroso censor desse tipo de coisa, para eliminar fatos indesejáveis e desfrutar da beleza da vida.

Com a revolução digital, há quem diga que já chegamos no futuro. O que acha disso? Não, não estamos vivendo no futuro. Vivemos numa lata de lixo, cercados de brinquedos e máquinas dos quais não temos a menor necessidade.

Ainda sobre Fahrenheit 451: o que achou do filme de Michael Moore que fez um trocadilho com seu livro, Fahrenheit 911? Moore é um bastardo estúpido! É um ladrão, um homem terrível! Um freaky vagabundo. Ele nunca ao menos me telefonou para avisar que usaria o título de meu livro… Sério, eu gostaria que ele queimasse no inferno!

Mas, e o filme, você viu? Por que veria? Você tá brincando? Ele roubou meu título! Aquele gorducho não passa de um bastardo débil mental, não me interessa.

Você gosta de assistir a filmes de ficção científica? Gosto de alguns. O melhor que vi até hoje é Contatos Imediatos do Terceiro Grau. Viu? Se não, corra, vá ver!

Que conselho daria para os escritores do futuro? Quer escrever fantasia? Escreva fantasia. Quer histórias policiais? Escreva histórias policiais. Gosta de poesia, teatro? Faça o que quiser. Mas se você não amar escrever, por favor, não faça isso. Há escritores demais no mundo.

A última: assim como dizem que os EUA são a “terra das oportunidades”, há quem proponha que o Brasil é a “terra do futuro”, por conta de um romance do austríaco Stefan Zweig [de 1941]. Concorda? Olha, infelizmente nunca estive no Brasil, só na Argentina. Mas posso te garantir que nunca ouvi falar nisso de “país do futuro”…

Autor: rbressane

Writer, journalist, editor

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