A volta e a revolta dos boêmios

Carr, Kerouac, Ginsberg, Burroughs
Carr, Kerouac, Ginsberg, Burroughs

>>> Direto do Estadón de ontem, que traz ainda bela entrevista com Gary Snyder e outra com Walter Salles

Beat em três tempos

Livrarias recebem lançamentos essenciais para compreender a geração que mudou a literatura norte-americana do século 20 – e que, desde o lançamento de
On the road, vende como uísque barato

Eles sempre foram assim: estão por aí, então desaparecem, ficam um tempo longe, parecem esquecidos… daí ressurgem atropelando, causando, quebrando tudo. É desse jeito desde que William S. Burroughs, Allen Ginsberg e Jack Kerouac cruzaram suas erráticas e alucinadas existências em suspeitos bares e apartamentos da Nova York dos anos 1940, formando a Geração Beat. O assunto estava adormecido até que dois lançamentos da L&PM (Visões de Cody, de Jack Kerouac, e Geração Beat, de Claudio Willer) e um da Cia. das Letras (E os hipopótamos foram cozidos em seus tanques, de Burroughs/Kerouac) devolvem à ordem do dia a ambição por transformar vida em literatura, e daí em vida de novo, típica daqueles iluminados vagabundos. Que só queriam escrever – mas estão forrando o bolso de muita gente (o deste resenhista inclusive).

A beat vende. Nem todo mundo gosta de encarar a feia verdade, mas o fato é que a contracultura virou a cultura oficial. Basta olhar ao redor. A rebeldia proposta pelos beatniks é o discurso vigente na propaganda – em que ‘cair fora’ nada mais quer dizer do que ‘cair dentro’. Vampirizando a mitologia boêmia, a indústria cinematográfica produziu alguns raros bons filmes (Naked Lunch, de Cronemberg) e muitos péssimos (Beat, de Gary Walcow). E logo mais Walter Salles ataca com um documentário e a adaptação de On the road.

De olho no lance, as editoras não param de jogar títulos para os leitores famintos por sexo, drogas e hard bop. LP&M e Cia das Letras, através de seus editores (Ivan Pinheiro Machado e Luiz Schwarcz, este ex-Brasiliense), são as principais responsáveis pela divulgação do movimento no Brasil. Embora a L&PM venha cumprindo o papel de editora beatniquim, parte da obra publicada pela Brasiliense encontra-se fora de catálogo. Segundo a coordenadora editorial Alice Kobayashi, a Brasiliense está se reestruturando e avalia a possibilidade de reedição dos beats – por enquanto, a opção é fuçar em sebos para encontrar raridades como o Junky, de Burroughs em tradução de Reinaldo Moraes.

Quem é quem

Aos que chegaram à festa agora, esse livrinho (120 págs.) de Willer é indispensável, ao lado de Kerouac, rei dos beats (Antonio Bivar, Brasiliense) e de Alma beat (vários autores, L&PM). Poeta e editor presente na encruzilhada brasileira entre surrealismo, beat e contracultura, Willer traduziu tanto o Uivo de Ginsberg quanto Os cantos de Maldoror de Lautréamont. Didático e lírico, Geração Beat esmiúça vidas e obras da sacrílega trindade (Burroughs/Kerouac/Ginsberg) e de coadjuvantes essenciais (Lawrence Ferlinghetti, Gregory Corso, Michael McClure, Gary Snyder), além de aproximar a beat da vanguarda de vários países (como o nadaísmo colombiano) e estabelecer pontes entre os norte-americanos e a contracultura brasileira – de que são figuras importantes Roberto Piva, Chacal, Paulo Leminski, Torquato Neto e Mário Bortolotto.

A multiplicidade de nomes não é exagerada. A imagem de um escritor solitário numa torre de marfim é absolutamente contrária à beat. Conforme Willer, o conceito que fundamenta cada texto e cada movimento da geração é o da amizade. “Adesão a um programa literário ou artístico nunca é impessoal. Mas na beat a amizade foi transcendental, no sentido romântico do termo. (…) Das amizades resultou a criação coletiva, nisso apresentando semelhança com o surrealismo. Criavam juntos (…), copidescavam-se (…), se tematizaram, citaram, prefaciaram, além de não economizarem dedicatórias (…), também viajaram juntos (…), alucinaram juntos, partilhando visões (…), ajudaram-se na busca por editores e espaços; convidaram-se para eventos. E fizeram sexo juntos (…). Porém, amizade e solidariedade foram maiores do que plataforma ou programa.”

O encontro

E os hipopótamos foram cozidos em seus tanques ilumina o início dessa amizade. Achado arqueoliterário, a parceria entre Burroughs e Kerouac só apareceu em 2008, três anos após a morte de Lucien Carr, pivô do obscuro “assassinato que deu origem aos beats”. Em 1944, Carr, então um adolescente que enlouquecia homens e mulheres por conta de sua beleza rimbaudiana, esfaqueou o amigo David Kammerer, um vagal intelectual quarentão que queria porque queria consumar sua obsessão sexual pelo garoto, a quem conhecia desde os 11 anos.

Carr jogou o corpo de Kammerer no rio Hudson e em seguida procurou Burroughs, então com 30, e Kerouac, 22, para se confessar. Depois entregou-se à polícia – que chamou a dupla para depor como testemunha. Matriculado na Universidade de Columbia, Carr havia apresentado Kerouac a Ginsberg (na época com 18 anos), que passaram pelo mesmo campus; já Kammerer tinha sido colega (e amante) de Burroughs quando estudaram em Sant Louis.

O crime detonou os primeiros escritos da trindade. Ginsberg escreveu poemas e peças autobiográficas; Burroughs e Kerouac, esta novela (170 págs.) em capítulos alternados, recusado por inúmeras editoras até que fosse enterrado sob as tábuas do assoalho da casa do autor de On the road, esquecido por décadas e proibido pelos autores de vir à tona até a morte de Carr – afinal, o Rimbaud de boteco se tornaria anos depois o poderoso diretor de jornalismo da United Press International.

Aparentemente mais um item no extenso parque temático beatnik, o pequeno romance é realmente bom. Vale sobretudo pela combustão espontânea, a narrativa adrenalinada, os diálogos espertos e a convulsiva descrição da Nova York dos anos 1940. Já estão aí a volúpia descritiva, a busca pelo êxtase profano/religioso e o doloroso sentimento de exílio característicos do melhor Kerouac. E impressiona como, bem antes de Junky e Almoço nu, o sarcasmo e a mirada suspeita de Burroughs surgem com personalidade – até em procedimentos próximos ao cut-up, técnica que aproxima violentamente fragmentos narrativos usada com maestria em narrativas como The Soft Machine (infelizmente nunca traduzida no Brasil).

O pré cut-up explica o título: “E os hipopótamos…” é frase que a dupla ouviu em um bar, proferida por um locutor de rádio ao narrar um incêndio em um zoológico. Carr, Ginsberg, Kerouac e Burroughs mortos hoje, o livro demonstra como um crime pode projetar uma sombra criadora sobre um grupo de escritores – para quem “um incêndio no zoológico” seria definição exata.

Pós-escrito

Se Hipopótamos seria o Gênesis beat, Visões de Cody vale por todo um Pentateuco para Kerouac – e também só foi publicado após sua morte. Ninguém melhor que o próprio autor para apresentá-lo: “Minha obra encerra um livro de vastas proporções como o Em busca do tempo perdido, de Proust, com a diferença que as minhas memórias são escritas na corrida em vez de mais tarde doente numa cama”.

Verdade: o retrato em 600 páginas do muso Neal Cassady, fora-da-lei essencial cujo jeito de falar rápido, engolindo as palavras, iluminou a escrita beat – ao lado do hard bop, das anfetaminas e das viagens incessantes –, é também um livro de memórias prolixamente detalhadas e um grandioso hino aos Estados Unidos dos caçadores de aventura.

A história? Uma reedição dos fatos de On the road, vistos sob novos ângulos, contando até com tediosas trascrições e recriações de conversas entre Keroauc e Cassady. Sem começo, meio ou fim precisos, os longos fluxos de consciência de Cody são parentes da action paiting de Jackson Pollock e das invenções poéticas e jogos sonoros de James Joyce.

Considerada a magnum opus de Kerouac, não é narrativa fácil (embora tenha sido traduzida com excelência por Guilherme da Silva Braga). Perto da ligeireza de Hipopótamos e da velocidade de On the road, Cody me parece sinceramente um pé no saco: os fanáticos que me desculpem, mas dá pra cortar umas 300 páginas na boa, não iriam fazer falta (falta fez sim um editor). A geração beat criou toda uma mitologia hoje transformada em um frenético supermercado a lançar leituras dispensáveis – sem falar nas dezenas de biografias, livros de fotografias e reedições louvadas como se fossem a salvação da literatura. Um olhar crítico não faria mal.

Acompanham a edição de Cody um divertido prefácio de Eduardo Bueno, tradutor de On the road, e um esclarecedor posfácio de Allen Ginsberg, “Visões do grande rememorador”. Com este, Hipopótamos e Geração Beat, o leitor dispõe de combustível suficiente para uma viagem beatnik – isso se não puser o pé na estrada antes de virar a próxima página.

Autor: rbressane

Writer, journalist, editor

6 pensamentos

  1. Comprei “Pé na Estrada” de Kerouac, mas ja tinha lido Uivo de Ginsberg (15 pra 20 anos atras) e Geração Beat do mesmo autor. Jim Morrison deve ter endoidado muito com este. Ja li “As Flores do Mal” de Boudelaire, considerado por muitos marco no “Satanismo Poetico”!! Bota pra f***r!!!!

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