Nossa vida não vale um Chevrolet

É relançado no Brasil o romance Crash, de J. G. Ballard, em que o automóvel é a metáfora extrema do século 20. Em entrevista a’O Estado, o autor inglês afirma: “Ciência e tecnologia servem aos nossos mais perversos impulsos. Os seres humanos são profundamente perigosos, e ficarão ainda mais”.

Segue a entrevista que Mr. Ballard me concedeu – por fax. É. Embora Ballard seja hoje, aos 77 anos, um dos grandes escritores de ficção científica vivos, não se afasta de sua velha e boa máquina de escrever; para ele, computadores e internet são um perigo… Acompanhe.

“Começou entre nós uma relação amorosa tão íntima e tão urgente que raramente passamos uma semana sem nos ver. Percebo que ela tem, na minha presença, sentimentos semelhantes aos meus, difíceis de descrever. Lembro-me de um dia em que passeávamos de carro, em alta velocidade. Atropelei uma ciclista jovem e bela, cujo pescoço quase foi arrancado pelas rodas. Contemplamos a morta por um bom tempo. O horror e o desespero que exalavam aquelas carnes, em parte repugnantes, em parte delicadas, recordam o sentimento dos nossos primeiros romances.”

O trecho, evocando um acidente automobilístico, uma sexualidade estranha e o senso de cumplicidade entre o horror e a beleza, parece o J. G. Ballard de Crash. Mas é um excerto d’ A História do Olho, de Georges Bataille (1928). O escritor inglês e o francês seguem à risca a receita de Lautréamont para a beleza: “O encontro fortuito entre um guarda-chuva e uma máquina de escrever sobre uma mesa de dissecação”. No caso de Crash, romance de 1973 ora republicado no Brasil sob nova tradução (de José Geraldo Couto, excelente; 240 págs., R$ 42, Companhia das Letras), os encontros nem são tão fortuitos assim – há acidentes automobilísticos casuais, e há os provocados.

A trama, sabe bem o leitor que assistiu ao longa de David Cronemberg (1996), tem, como no romance de Bataille, um casal no eixo de estranhas experiências. O narrador, um certo diretor de cinema publicitário também chamado Ballard, leva uma vida leviana e insípida ao lado da mulher, Catherine, dona de uma agência turística. Ambos usam seus casos extraconjugais para aquecer o casamento certinho: “Muitas vezes eu conseguia adivinhar o nome do seu último amante antes que ela o revelasse no clímax de nossos atos sexuais. Esse era um jogo que eu e ela precisávamos jogar”, relembra o publicitário Ballard, no leito do hospital para onde é levado após o acidente automobilístico que mudará para sempre sua vida. “Houve ocasiões em que eu senti que aqueles casos só aconteciam para fornecer a matéria-prima dos nossos jogos sexuais.” Mas não é com a mulher que Balard vai formar o eixo da narrativa, e sim com um tal de Vaughan.

 

A agonia da sociedade do espetáculo

O acidente em que Ballard bate de frente com o carro de outro médico, matando-o instantaneamente, revelará para o publicitário uma nova sexualidade. Ele passa a ser seguido por Vaughan, um médico que, após quase morrer em um desastre de automóvel, fica obcecado por batidas e afins. A partir da amizade entre os dois, o autor desfilará, com imensas elegância e riqueza de detalhes, uma espiral de analogias estilizadas a partir da metáfora matriz: o choque entre dois corpos de metal é o único encontro possível entre os anestesiados corpos do século 20. “Por conta dos lugares-comuns da vida cotidiana, com seus dramas amortecidos, toda a minha competência em lidar com o sofrimento físico havia ficado por muito tempo embotada ou esquecida”, reflete o publicitário. “A trombada era a única experiência real que eu tinha em muitas anos. Pela primeira vez eu me confrontava fisicamente com meu próprio corpo.”

Sem alimentar muito adiante a paráfrase do romance, pode-se contar que, em busca de um acidente apoteótico envolvendo a atriz Elizabeth Taylor (Vaughan é fascinado pela reconstrução artística de desastres famosos, como os que vitimaram o ator James Dean, o pintor Jackson Pollock ou o escritor Albert Camus), Ballard e seu amigo filmam crashtests, fazem sexo com mulheres traumatizadas e/ou mutiladas em acidentes, destroem carros, fantasiam a morte de cada um e dos que estão ao redor, acelerando ou amortecendo a velocidade de suas mentes por meio de haxixe, ácido lisérgico – e muita gasolina. Na paixão pela máquina, a dupla cria um evangelho do desejo. Os mais esquisitos pormenores são associados a uma miríade de fetiches sexuais; entre as dezenas de atos sexuais narrados, poucos não terão como cenário – ou protagonista – um automóvel. “Para Vaughan, os menores detalhes de design e estilo tinham uma vida orgânica tão plena de significado quanto os membro e os órgãos sensitivos dos seres humanos que dirigiam aqueles veículos.”

O autor tem um olho irônico para a agonia da sociedade de espetáculo (isso já nos anos 1970), reafirmando que a realidade só pode ser alcançada mediante sua estilização, sua transformação em matéria voyeurística. Numa das cenas mais impactantes – e como não notar, hilariantes – do romance, num lava-rápido Ballard vê Catherine transar com Vaughan no banco de trás: “Fiquei sentado em silêncio no banco da frente enquanto o sabão branco escorria pelas capotas e pelas portas como um véu líquido. Atrás de mim, o sêmen de Vaughan reluzia nos seios e no abdome da minha mulher”. Como Bataille, que n’A História do Olho associa partes e funções do corpo humano à Natureza (a urina é relacionada ao relâmpago, a menstruação à Lua etc), em Crash Ballard atrela a matéria fria do automóvel ao corpo: “Via o interior do carro como um caleidoscópio de pedaços iluminados dos corpos das mulheres”.

Conforme afirma a seguir, em entrevista exclusiva a O Estado, Ballard quis comprovar, em Crash, a derrocada da antinomia Natureza X Cultura: “A Civilização é a verdadeira Natureza. As florestas estão dentro de nossas mentes”, diz. A entrevista foi realizada por fax: embora Ballard seja hoje, aos 77 anos, considerado um dos grandes escritores de ficção científica vivos, não se afasta de sua velha e boa máquina de escrever; para ele, computadores e internet são um perigo… Acompanhe.

 

O ESTADO Surpreende em Crash a busca minuciosa por tornar visíveis as obsessões do narrador – uma vontade de aproximar a literatura de uma certa carnalidade. Como foi assistir pela primeira vez ao filme de Cronemberg? O cinema pode oferecer uma experiência menos ou mais física que a literatura? J. G. BALLARD Fiquei muito impressionado com o filme de Cronemberg, bastante fiel ao espírito do meu romance. Mas o filme e o romance são meios totalmente distintos, e a uma tradução exata de um romance para um filme é muito rara. O romance pode esconder, mas o filme é forçado a mostrar.

 

Penso que em sua obra há muitos pontos de contato com as idéias de Georges Bataille. Uma das semelhanças é a junção violenta entre primeiro plano e cenário – em Crash, isso aparece sobretudo na mixagem entre homem e máquina, quase como se a cultura, a civilização, fosse a verdadeira natureza. Esse é um caminho para interpretar seu texto? Cultura e civilização (e a civilização feita pela mão do homem, a tecnologia) são a verdadeira Natureza. As florestas estão todas dentro de nossas mentes. A tecnologia é a grande facilitadora. Criadas pela razão e pelo Iluminismo, ciência e tecnologia agora servem para os nossos mais perversos e desviantes impulsos. Os seres humanos são profundamente perigosos, e ficarão ainda mais.

 

Recentemente foi publicado no Brasil Terroristas do Milênio (Millenium People). Creio haver neste livro uma série de coincidências com Crash: intelectuais de classe média alta entediados, casamentos entorpecidos, uma revolta infantil, protagonistas fascinados pela figura de um outsider (sem falar nas mulheres algo perversas e suas sexies muletas). Mas me parece que em Crash o protagonista leva sua náusea em relação a sua vida “normal” às últimas conseqüências, enquanto que em Terroristas do Milênio o narrador é de certa maneira tão idealista quanto cínico (e de certo modo conformista). O que mudou, daquela classe média dos anos 1970 em relação à dos anos 2000? Não estou tão certo se você pode comparar Crash a Millenium People. O último é uma sátira a estapear os medos da novas classes médias, que estão perdendo seu lugar privilegiado na sociedade – e com efeito, se tornando um novo proletariado. Sua nêmese é o Doutor Gould. Mas às classes médias falta a coragem para carregar sua rebelião para o ponto de falta de sentido. Elas retornam às suas casas, e estão satisfeitas com meras concessões em seus estacionamentos. Revelam sua real condição de escravidão. Em Terroristas do Milênio, Gould realiza o crucial ato surrealista (disparando um revólver ao acaso no meio da multidão) atirando e matando em uma apresentadora de TV, que para ele é um ser humano completamente em branco. Já Crash mostra que a raça humana abraça a psicopatologia – o que certamente acontecerá algum dia, depois de alguns falsos inícios (os nazistas alemães, o stalinismo na Rússia, e mesmo talvez os religiosos hoje nos EUA).

 

No prefácio da edição de 1995 de Crash, você diz que ao escritor cabe “inventar a realidade”. Num mundo superpovoado por demandas da informação, a missão do escritor seria “dar um sentido mais puro às palavras da tribo”, como pedia Mallarmé? O que pensamos que é a realidade do dia-a-dia é em fato nossa mais inimaginável ficção. Nossos sistemas nervosos centrais nos bombardeiam com uma corrente de mentiras e meias-verdades. O trabalho do escritor é dar sentido a isso.

 

Se o século 20 foi o século do automóvel, como você escreveu, pode-se afirmar que o século 21 será o século da internet? A internet, sim (ou os sistemas de realidade virtual), é a maior ameaça de todas.

 

O que você está escrevendo no momento? Acabei de escrever minha autobiografia, chamadas Miracles of Life [Milagres da Vida], uma descrição dos meus filhos – e, por suposto, de todas as crianças.

 

Para finalizar a respeito de Crash, e lembrando certa efeméride, o que seus personagens Vaughan e Ballard pensariam de um acidente de carro envolvendo uma princesa britânica, seu namorado, um milionário saudita, um carro alemão, um túnel e paparazzi franceses? Uma morte trágica, com certeza. E possivelmente a mais trágica morte de uma celebridade que jamais veremos. Se Tom Cruise fosse morrer num acidente de carro, quem realmente se importaria? Diana foi uma genuína figura trágica, abandonada pela mãe quando criança, abusada pela famíla real e por seu marido real, se agarrando à celebridade para manter-se amada pelo público. Uma morte trágica foi inscrita em sua curta vida. Se você tem de morrer tragicamente, tem de ser em uma Mercedes preta, com seu namorado árabe e seu guarda-costas ao seu lado, perseguido por paparazzi, num túnel parisiense que é uma entrada para um não-mundo [neitherworld]. Talvez ela fique aí, como Eurídice, esperando pelo seu Orfeu para reclamá-la. O inferno tem muitos espelhos. Depois de sua morte, que me chocou profundamente, dois jornalistas da Fleet Street [rua londrina que concentra os jornais] me ligaram. Os dois pensaram que eu era parcialmente responsável – como se Crash fizesse algum estranho sentido para sua morte…

Autor: rbressane

Writer, journalist, editor

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